Estudantes publicaram vídeo no
TikTok contando caso de paciente que passou por cirurgias no InCor, em SP. Elas
dizem que um dos transplantes não deu certo porque a paciente, que morreu em
fevereiro, não teria tomado corretamente as medicações. Família foi à polícia e
ao MP pedir retratação.
Por Paola Patriarca, g1
SP — São Paulo
Reprodução
VEJA O VÍDEO CLICANDO NA IMAGEM
A Polícia Civil abriu inquérito
por injúria após a família da jovem Vitória Chaves da Silva, que morreu em
fevereiro em São
Paulo após lutar contra uma cardiopatia congênita, prestar
queixa na delegacia e acionar o Ministério Público para denunciar duas
estudantes de medicina por exporem o caso ironizando a paciente.
Gabrielli Farias de Souza e Thaís
Caldeiras Soares Foffano publicaram um vídeo no TikTok em que falam sobre os
três transplantes de coração que Vitória passou no Instituto do Coração
(InCor), em São Paulo, e dizem que um deles não foi bem-sucedido porque
a paciente não teria tomado corretamente as medicações. A família de Vitória
pede uma retratação.
Em nota, as estudantes disseram
que não houve qualquer deboche ou insensibilidade, e que solidarizam com a
família de Vitória (leia na íntegra abaixo).
De acordo com o delegado Marco
Antonio Bernardo, do 14º Distrito Policial, a mãe da jovem foi até a delegacia
na terça-feira (8), onde foi ouvida e, então, foi aberto o inquérito.
"Primeiro foi feito um
boletim de ocorrência não criminal, já que o vídeo não cita o nome de Vitória e
não houve um crime cometido. A mãe veio novamente, a ouvimos e, então, como ela
estava se sentindo ofendida com o conteúdo publicado referente à filha, se
sentindo difamada com as informações divulgadas, instauramos inquérito por
injúria em uma ação penal privada", afirmou.
O delegado ainda explica que
neste tipo de ação a pessoa ofendida deve apresentar uma queixa-crime para o
processo judicial ser instaurado. Isso ocorre em casos de calúnia, difamação,
injúria ou violação de direito autoral.
"Não há encaminhamento do
inquérito policial para o Ministério Público analisar se apresenta denúncia ou
não, como nos casos de ação penal pública. No caso da ação penal privada, em
denúncia por injúria, a vítima faz requerimento, instaura inquérito, e o
advogado da vítima é quem oferece queixa-crime contra as pessoas para seguir o
processo no Judiciário", afirmou ao g1.
Ainda conforme o delegado, as
alunas serão intimadas para prestarem depoimento na delegacia nos próximos
dias.
"Já ouvimos a mãe e vamos
querer ouvir as alunas e representantes do hospital também nos próximos dias. E
mesmo com o inquérito instaurado, a família de Vitória pode entrar com uma ação
civil por danos morais", disse.
Denúncia
Alunas de medicina são denunciadas por expor caso de jovem transplantada em vídeo e ironizar — Foto: Reprodução/TikTok
Ao g1, a irmã de
Vitória contou que o vídeo foi postado em 17 de fevereiro deste ano, nove dias
antes de Vitória morrer por choque séptico e insuficiência renal crônica. A
família, porém, só teve conhecimento sobre o vídeo na semana passada.
Eles contestam a afirmação de que a paciente não teria tomado
corretamente os medicamentos após o segundo transplante.
Um amigo dela [Vitória] que mora na Holanda reconheceu a história e nos enviou. Ficamos em choque quando descobrimos. As duas estudantes fizeram estágio de 30 dias na instituição [InCor]. Nem chegaram a conhecer a minha irmã. Nunca foram vê-la. Por conta dessa desinformação, as pessoas passaram a criticar minha irmã.
— Giovana Chaves, irmã da
paciente
Na gravação, que foi apagada das
redes sociais, aparecem Gabrielli e Thaís dizendo que estavam no InCor. Elas
não citam o nome de Vitória, mas falam que estavam chocadas após saberem que
uma paciente do hospital tinha recebido três corações e um rim.
"A gente está em choque, sem
acreditar até agora. São 7h da manhã. Uma paciente que fez transplante cardíaco
três vezes. Um transplante cardíaco já é burocrático, é raro, tem questão da
fila de espera, da compatibilidade, mil questões envolvidas. Agora, uma
pessoa passar por transplante três vezes, isso é real e aconteceu aqui no InCor",
afirmou Thaís.
Gabrielli diz, então, que houve
rejeição após o segundo transplante devido à falta de comprometimento
da paciente em tomar os remédios.
“A segunda vez ela transplantou e não tomou os remédios que deveria tomar, o corpo rejeitou e teve que transplantar de novo, por um erro dela. Agora. ela transplantou de novo, aceitou, mas o rim não lidou bem com as medicações”, disse Gabrielli.
No final, Thaís ainda ironiza: “Essa
menina está achando que tem sete vidas. Não sei. Já é tão raro,
difícil a questão de compatibilidade, doação, 'n' fatores que não sei
especificamente por que não passamos por cirurgia cardíaca ainda. Estou em
choque. Simplesmente uma pessoa que passou por três transplantes de coração. Ela
recebeu três corações diferentes”.
👉 O g1 tenta
contato com as duas estudantes de medicina que aparecem no vídeo.
Em nota, a Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (FMUSP), responsável pelo InCor, informou que as
alunas são "graduandas de outras instituições e estavam no hospital em
função de um curso de extensão de curta duração (um mês)". Disse ainda que
"repudia com veemência qualquer forma de desrespeito a pacientes e
reafirma o compromisso inegociável com a ética". Leia a nota
completa mais abaixo.
Em nota, o Ministério Público
disse que o caso foi distribuído para o 4º Promotor de Justiça de Direitos
Humanos da capital, que avalia o caso. Até a última atualização desta
reportagem, ele não havia se manifestado.
Doença do enxerto
A irmã de Vitória diz que o
segundo transplante não foi bem-sucedido por conta da doença do enxerto.
O Profissão Repórter mostrou a cirurgia de Vitória em 2016. Em
2021, durante uma entrevista ao programa novamente, ela
ressaltou estar debilitada, e o coração não estar 100%.
"Elas fazem essa afirmação e não foi isso. Nós temos prova com o testemunho da médica que cuidou da minha irmã por 22 anos. Ela teve doença do enxerto, que é normal dar em órgão transplantado", diz Giovana.
Diante do vídeo, a família
decidiu registrar boletim de ocorrência e procurou o Ministério Público. Os
parentes também procuraram o InCor, que disse a eles que não estava ciente do
vídeo, que vai contra a ética da instituição.
Também fomos à faculdade de uma delas. Eles demonstraram repúdio ao ato. Queremos que elas se retratem conosco, porque tocou numa ferida muito aberta.
— Giovana Chaves, irmã da
paciente
A família pede uma retratação
também em vídeo. "Para que desmentissem essa desinformação porque todo
mundo está criticando minha irmã", afirma Giovana.
O que dizem as alunas
"Diante da repercussão
gerada por um vídeo publicado em ambiente pessoal, nós, estudantes de Medicina
mencionadas em recentes reportagens, vimos a público prestar alguns
esclarecimentos, com respeito, empatia e responsabilidade.
O conteúdo divulgado teve como
única intenção expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no
ambiente de estágio.
A situação descrita, por sua
raridade, despertou nossa curiosidade acadêmica e levou a uma reflexão
espontânea sobre aspectos técnicos que jamais havíamos estudado ou presenciado.
É importante esclarecer que
não tivemos contato com a paciente, não acessamos seu prontuário, não citamos
seu nome, não capturamos nem divulgamos qualquer imagem, ou seja, não sabíamos
sequer quem era. Também não temos como afirmar se as fotos que passaram a
circular nas redes sociais são, de fato, da paciente mencionada nas matérias
jornalísticas.
Lamentamos profundamente que o
vídeo — gravado sem qualquer informação que possibilitasse identificação —
tenha sido interpretado de forma diversa da nossa real intenção, vinculando-o a
uma determinada pessoa.
Reafirmamos que não houve
qualquer deboche ou insensibilidade. Nosso compromisso com a vida, a dignidade
humana e os princípios éticos da Medicina permanece inabalável.
Lamentamos também que, por
razões alheias à nossa intenção, alguns segmentos tenham divulgado trechos
isolados do vídeo, fora de contexto, o que contribuiu para distorções na
interpretação do conteúdo.
Manifestamos nossa
solidariedade à família da paciente mencionada nas reportagens, a quem
respeitamos sinceramente, e reiteramos que jamais tivemos a intenção de
ofender, expor ou causar sofrimento. Estamos tomando as providências cabíveis
para esclarecer os fatos e preservar nossa integridade pessoal, acadêmica e
emocional.
Agradecemos às pessoas que têm
nos escutado com respeito e compreensão neste momento difícil, que tem sido
também de profundo aprendizado".
O que diz a FMUSP
Abaixo, leia a íntegra da nota da
FMUSP em nome do InCor:
"A FMUSP esclarece que as
alunas envolvidas na ocorrência são graduandas de outras instituições, que
estavam no hospital em função de um curso de extensão de curta duração (um
mês). Atualmente, não possuem qualquer vínculo acadêmico com a FMUSP ou com o
InCor.
Assim que foi tomado
conhecimento do fato, as universidades de origem das estudantes foram
notificadas para que possam tomar as providências cabíveis.
Internamente, a FMUSP está
tomando medidas adicionais para reforçar junto aos participantes de cursos de
extensão as orientações formais sobre conduta ética e uso responsável das redes
sociais, além da assinatura de um termo de compromisso com os princípios de
respeito aos pacientes e aos valores que regem a atuação da instituição.
A FMUSP repudia com veemência
qualquer forma de desrespeito a pacientes e reafirma o compromisso inegociável
com a ética, a dignidade humana e os valores que norteiam a boa prática médica.
A instituição reforça ainda a
missão de formar profissionais comprometidos com a excelência e com o cuidado
humano, valores que são inegociáveis em nossa Instituição."
O que dizem as faculdades
Gabrielli Farias de Souza cursa
medicina na universidade Anhembi Morumbi, de São Paulo, e Thaís Caldeiras
Soares Foffano na Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (Faseh), de Vespasiano,
região metropolitana de Belo Horizonte (MG).
Ao g1, as
universidades enviaram a mesma nota. Nela, lamentaram o caso e disseram que se
solidarizam com a família de Vitória.
"A universidade lamenta
profundamente o ocorrido e solidariza-se com os familiares da paciente,
ressaltando que, tão logo teve conhecimento do fato, adotou com a máxima
urgência as medidas cabíveis para apuração detalhada do caso, seguindo as
diretrizes previstas em seu regimento interno", afirmaram.
E ressaltaram: "A
Instituição reforça a sua solidariedade e reafirma o seu comprometimento em
acompanhar o caso e seus desdobramentos, estando inclusive à disposição das
autoridades para qualquer contribuição no sentido de apuração dos fatos".
Luta de Vitória
Vitória Chaves da Silva quando fez o segundo transplante no Incor, em São Paulo — Foto: Reprodução/Profissão Repórter
Vitória nasceu em Luziânia (GO) e
foi diagnosticada com grave cardiopatia congênita chamada Anomalia de
Ebstein, doença rara que afeta a válvula do coração. Os médicos deram 15
dias de vida.
Após várias cirurgias e
complicações, aos 4 anos foi para São Paulo, onde teve parada cardíaca durante
um cateterismo. Foi então diagnosticada com a necessidade de um transplante de
coração. Após 1 ano e 4 meses na fila, fez o primeiro transplante em 2005, no
Incor, quando tinha apenas 5 anos.
Dez anos depois, a jovem voltou a
apresentar problemas, o que foi necessário um novo transplante em 2016, já que
o coração funcionava apenas 3%. O Profissão Repórter mostrou
o caso dela na época (assista vídeo abaixo).
Em 2019, Vitória passou a sofrer
quadro de rejeição aguda do órgão e ficou internada em um hospital do Distrito
Federal. Mesmo assim, ela recebeu
liberação médica e foi de ambulância fazer a prova do Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem). Ao g1, ela disse que o sonho era ser
médica.
"Só de conseguir fazer a prova já é uma vitória. Estou confiante, já deu certo. Quero deixar de ser paciente para atender, me especializar em cardiologia pediátrica e retribuir tudo o que os médicos fizeram por mim", disse na época.
Vitória Chaves da Silva, 20 anos, foi de ambulância fazer prova no DF — Foto: Wellington Hanna/TV Globo
Em 2023, a jovem precisou passar
por transplante de rim e voltou para a fila novamente para um novo coração. Ela
fez o terceiro transplante em 2024.
Em fevereiro deste ano, Vitória
morreu por insuficiência renal crônica e choque séptico. Ela estava na UTI do
Incor havia um ano e 9 meses.
Blog do Paixão