Um revólver
calibre 38 é a peça-chave para esclarecer a morte de um menino de dez anos que
roubou um carro e teria teria trocado tiros com a Polícia Militar em São Paulo
Corpo do menino de 10 anos fica no veículo após ser confronto
fatal com a polícia (Foto:
VEJA.com/Reprodução)
Há
quinze dias, a perseguição policial que resultou na morte de um menino de 10
anos após o roubo de um carro na Zona Sul da cidade de São Paulo permanece sem
algumas respostas. Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira morreu com um tiro no olho
esquerdo disparado por um soldado da Polícia Militar a poucos metros de
distância. Segundo as autoridades de segurança, o policial o alvejou porque
Ítalo reagiu a tiros à caçada da PM.
Desde então, o Departamento Estadual de
Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) investiga a procedência e, especialmente,
como o revólver Taurus calibre 38 entregue pelos policiais que atuaram na noite
do caso foi parar nas mãos daquele menino pobre, que passou seus poucos anos de
vida perambulando por abrigos e morando com a avó ou na rua. Uma das linhas de
apuração é que Ítalo poderia ter roubado a arma de traficantes da Favela do
Piolho, na Zona Sul paulistana. A outra - e grave - é que a arma teria sido
plantada pelos policiais, ou seja, Ítalo jamais teria efetuado disparos e
morreu por despreparo dos agentes de segurança.
A principal testemunha do crime, J.E.S.A, um garoto
de 11 anos que acompanhava Ítalo na fuga, já deu três versões diferentes sobre
a existência desse revólver. Nas duas primeiras, relatou que o companheiro, de
fato, portava a arma e a descarregou nos policiais. Na última, afirmou que o
amigo não estava armado e que os PMs forjaram um flagrante para incriminá-lo.
O site de VEJA apurou a procedência da arma. O
revólver pertence à empresa de segurança patrimonial Mult Service, sediada em
Bauru (SP), e foi roubado no dia 19 de abril de 2015, em um roubo de carga em
Jundiaí (SP). Dois vigilantes da Mult Service escoltavam um caminhão recheado
de cigarros da Philip Morris na rodovia Anhanguera, quando seis carros se
aproximaram e encurralaram o veículo em que estavam. Sob a mira de fuzis, os
seguranças nem cogitaram reagir. Foram obrigados a entrar em uma van, onde
foram mantidos por duas horas, até serem libertados pelos bandidos em
Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo.
Mercadoria considerada barata no submundo do crime,
o revólver calibre 38 era provavelmente o que menos interessava aos
assaltantes. Os vigilantes da Mult Service também portavam uma espingarda
calibre 12 e dois coletes à prova de bala, que também foram roubados. Prova
disso é que os bandidos não se importaram em deixar a numeração da arma
intacta: DO151755. Em roubos de armamento, é comum que os ladrões raspem o
número do registro.
A Mult Service seguiu os procedimentos para reaver a
arma, registrou um boletim de ocorrência e relatou o roubo no sistema de Gestão
Eletrônica de Segurança Privada (Gesp), da Polícia Federal. Mesmo após a
apreensão da arma no carro em que Ítalo foi morto, a empresa ainda não foi
notificada pela polícia de que o revólver foi encontrado.
Anderson Filgueira, o diretor de Estratégia da CTS,
uma das maiores empresas de segurança do país, afirmou ao site de VEJA que é
comum a polícia noticar as empresas rapidamente após a recuperação de armamento
roubado. A informação foi confirmada pela PF, responsável por gerenciar o
Sistema Nacional de Armas (Sinarm). A liberação de uma arma, no entanto, pode
levar anos, ainda mais quando se trata de prova do crime - o que ocorre no caso
de Ítalo. Filgueira calcula que apenas 20% das armas roubadas são recuperadas
pela polícia. "E esse número é ainda otimista", disse ele.
Um revólver 38 é uma arma bastante comum entre
delinquentes de baixo escalão. Costuma ser vendido por cerca de 200 reais no
mercado negro, e 500 reais no formal. A arma também é considerada leve e de
fácil manuseio. Apesar de saberem da ficha corrida de Ítalo em furtos pela
cidade, seus familiares garantem que ele não andava armado e considera
"improvável" tê-la recebido de algum traficante. "Não é assim
que funciona na favela. Dar arma para criança é BO", diz a prima do
garoto, Bianca de Jesus, 19 anos, que cresceu com ele na favela do Piolho, na
Zona Sul de São Paulo.
Exames - Passadas mais de duas semanas do caso, a Polícia
Civil já tem em mãos os resultados dos exames balístico, residuográfico e
cadavérico. Alguns pontos já estão claros. O tiro que matou Ítalopartiu da arma do PM
que estava na moto a
uma curta distância do carro. Outros aspectos ainda permanecem obscuros e foram
classificados como inconclusivos nos laudos: as balas supostamente disparadas
pelos garotos não foram encontradas no trajeto da fuga; a cena do crime foi
remexida e a arma, retirada do local. O procedimento padrão seria a PM esperar
a chegada da Civil para fazer a vistoria.
O revólver teria sido encontrado no chão do carro,
um Daihatsu Terios 1998, próximo ao pedal. Os PMs chegaram a vasculhar o
veículo à procura de outras pessoas: "Eles não acreditaram que só haviam
crianças. Pensavam que podia ter mais algum adulto", afirmou o advogado
dos seis policiais que participaram da ocorrência, Marcos Manteiga. Ele ainda
justificou que o revólver foi recolhido por ordem do comandante da região. "Havia
muitos curiosos no local. Eles agiram com ordem superior. Até porque tinha uma
comunidade ali perto. Já imaginou se alguém pega a arma e começa a atirar. Vai
arriscar deixando ali?", questionou ele.
Indícios de pólvora e chumbo foram identificados nas
mãos de Ítalo, o que reforça a tese da Polícia Militar. No entanto, os
vestígios também são detectados se os policiais colocaram a arma recém-acionada
na mão do menino. Um novo exame residuográfico ainda deve ser realizado,
porque, a despeito do resultado nas mãos, não foi encontrado pólvora em uma
luva de dedos usada pelo menino.
Parte dessas dúvidas devem ser dirimidas com a
reconstituição do caso, que deve ser feita neste domingo. O garoto de 11 anos
que presenciou a morte e deu três depoimentos diferentes às autoridades
policias, entrou no programa de
proteção a testemunhas e
deixou o Estado de São Paulo. Afastados das ruas, os seis policiais envolvidos
chegaram a cumprir expediente administrativo na Corregedoria da PM, mas foram
liberados nesta quinta-feira. Eles também já foram ouvidos pela DHPP.
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