Desmonte da rede de proteção à
mulher facilitou crime
Por
Agência Brasil – Rio de Janeiro
Foto: Reprodução
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assados oito anos da promulgação da Lei
13.104, de 9 de março de 2015, conhecida
como Lei do Feminicídio, o assassinato de mulheres em situação de
violência doméstica e familiar ou em razão
do menosprezo ou discriminação à sua condição aumentaram no país. A lei alterou
o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do
crime de homicídio, além de incluí-lo no rol dos crimes hediondos.
O Instituto de Segurança Pública do Rio de
Janeiro (ISP) começou a compilar e divulgar os dados sobre o crime
de feminicídio no estado em 2016 e mostra o crescimento dos casos nos últimos
anos. Foram 78 em 2020, 85 em 2021 e saltou para 97 no ano passado, ainda sem
computar os dados de dezembro. Há notícias de
pelo menos mais três casos no último mês de 2022. Quanto às tentativas de
feminicídio, foram 270, 264 e 265 em cada ano, respectivamente.
Apenas na favela da Rocinha,
foram dois casos no dia 29 de dezembro e mais dois
nos primeiros dias deste ano. Em todo o estado do Rio, houve pelo
menos quatro casos nos primeiros dias de 2023, além de uma tentativa de
feminicídio. A vítima está internada.
A coordenadora executiva da organização
Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), a advogada Leila
Linhares Barsted, que também integra o Comitê de Peritas do mecanismo de
segmento da convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos,
para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, explica que o
feminicídio é um fenômeno social grave.
De acordo com ela, o crime foi intensificado
pela pandemia de covid-19, quando vítimas e agressores passaram a conviver por
mais tempo, bem como reflete o machismo estrutural e os altos índices de
violência do país.
“O índice de violência, o incentivo às armas
de fogo, esses discursos de ódio, né? Há uma misoginia e um machismo que
estão cada vez mais fortes na sociedade brasileira. Ou seja, aquele
machismo que se fazia um pouco mais discreto está nas páginas dos jornais,
proferido por lideranças das instituições do Estado. Então é como se houvesse
uma licença para que homens exercessem o machismo de uma forma mais grave
contra as mulheres”.
Casos de 2023
No Dossiê Mulher do
ISP, que traz dados de 2016 a 2020, os números mostram que a maioria das
vítimas de feminicídio é morta pelo companheiro ou ex-companheiro (59%) e
dentro de casa (59%). Barsted explica que o feminicídio normalmente envolve uma
relação íntima, na qual o homem considera ter a
posse da mulher.
“Ou seja, é o machismo que não admite que a
mulher fuja do controle desse homem. Então, muitas vezes esses eventos
ocorrem exatamente quando as mulheres não querem mais viver em situações de
violência e resolvem se separar. Esse machismo se dá exatamente nesse sentido,
da ideia de que o homem tem a posse da mulher e quando ele perde a posse,
decide então castigá-la”.
Os feminicídios ocorridos no estado este ano
confirmam os dados.
No dia 1º, Stephany Ferreira do Carmo, 25
anos, foi esfaqueada dentro de casa, na Cidade Alta, zona norte da capital, na
frente do filho de 7 anos. Ela está internada com quadro estável, após ficar em
coma induzido e passar por uma cirurgia. O suspeito, que foi preso, é Adriano
Quirino, com quem a vítima mantinha relacionamento há um ano. A briga teria
sido por ciúmes.
No dia 2, Gabriela Silva de Souza, 27 anos,
foi esganada até a morte pelo marido, Fábio Araújo da Silva, em Belford Roxo,
na baixada fluminense. Ele se entregou à polícia. Gabriela havia decidido se
separar, depois de descobrir uma traição do companheiro.
Também no dia 2, Rosilene Silva, 39 anos, foi
atingida por quatro tiros no Mercado de Peixe de Cabo Frio, onde trabalhava.
Ela já havia denunciado o ex-marido, Thiago Oliveira de Souza, por violência doméstica.
Ele foi preso no dia seguinte, na BR-101, em Casimiro de Abreu.
No domingo passado (8), Carmem
Dias da Silva, 29 anos, foi morta a facadas e com cortes de vidro, na Rocinha,
após uma briga com Wendel Luka da Silva Virgílio, preso em flagrante. Era a
primeira vez que Carmem se encontrava com Wendel, que conheceu pela internet.
Ela era sobrinha do pedreiro Amarildo Souza, morto em 2013 após ser levado para
averiguações na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha.
Também na Rocinha, Daniela Barros Soares, de
29 anos, levou um tiro na cabeça enquanto dormia, no dia 9, do ex-marido Rios
Loureiro de Souza Sablich, que se entregou na Cidade da Polícia. Rios e Wendel
tiveram a prisão em flagrante convertida em preventiva na audiência de
custódia, ocorridas terça-feira (10).
Enfrentamento à
violência
Em sua posse, no dia 1º, o governador Cláudio
Castro afirmou que dará prioridade ao combate à violência contra a mulher e
ao feminicídio. Ele citou programas já implementados por sua gestão, como o
aplicativo Rede Mulher, o atendimento aos familiares das vítimas do
feminicídio, a Patrulha Maria da Penha, a Casa Abrigo e o Ônibus Lilás.
Castro também criou a Secretaria da Mulher,
que será comandada por Heloísa Aguiar. A reportagem solicitou entrevista com a
secretária, mas ainda não obteve retorno.
Outra área que será fortalecida este ano é a
Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que elegeu a primeira mulher no cargo de
defensora-geral em 68 anos de história da instituição. Na cerimônia de posse,
na terça-feira (10), Patrícia
Cardoso afirmou que traz a perspectiva de gênero, o combate à violência contra
a mulher e que pretende implantar essa visão na defensoria.
“São estatísticas absurdas, as mulheres estão
sendo mortas cada vez mais. Esse desafio do enfrentamento da violência contra a
mulher, da capacitação dessa mulher para que possa arrumar as malas, como a
minha avó fez [a mala] do meu avô, essa capacidade, esse empoderamento,
são muito importantes. A Defensoria, junto com o governo do estado, tem
papel de destaque e eu queria deixar isso registrado”.
Para Basterd, o fato de ter duas
mulheres em posições de poder e decisão deve contribuir para o enfrentamento à
violência. De acordo com a advogada, é preciso institucionalizar o diálogo
entre as diversas instituições que trabalham nessa área, para promover de fato
uma rede integrada de proteção à mulher vítima de violência e, assim, prevenir
o feminicídio.
“Eu espero sim que a nova secretária possa
ter força suficiente e interlocução contínua com os demais poderes e com os
movimentos de mulheres. O Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres tem uma
comissão de segurança da mulher, a Escola de Magistratura do Rio de
Janeiro tem um fórum permanente sobre violência contra as mulheres.
Então é importante que a nova gestora de política das mulheres possa abrir um
canal de interlocução com os movimentos sociais, com as outras organizações do
estado, para que a gente possa realmente fortalecer essa política e colocá-la
em prática”.
Ela destaca também a necessidade de garantir
orçamento para a implementação das medidas protetivas previstas na Lei Maria da
Penha e a devida fiscalização para verificar se elas estão funcionando, bem
como a produção de dados estatísticos sobre o tema.
“Muitas vezes isso fica escrito em grandes
documentos, em grandes propostas, mas os recursos orçamentários, a capacitação,
o aumento e o fortalecimento das equipes acabam não se concretizando. Sugerimos
que os dados sobre medidas protetivas possam ser mais completos. Que tipo de
medida, qual o perfil da mulher que recebeu a medida, qual o perfil do
agressor, qual a resposta que essa mulher recebeu do Poder Judiciário? Ou seja,
são muitas questões que ainda precisam ser preenchidas.”
Transição federal
No Relatório do Gabinete de Transição
Governamental, o grupo que tratou das políticas para as mulheres apontou a
gravidade do problema.
“No primeiro semestre de 2022, o Brasil bateu
recorde de feminicídios, registrando cerca de 700 casos no período. Em 2021,
mais de 66 mil mulheres foram vítimas de estupro; mais de 230 mil brasileiras
sofreram agressões físicas por violência doméstica. Os dados são do mais
recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Embora todas as mulheres
estejam expostas a essas violências, fica evidente o racismo: as mulheres
negras são 67% das vítimas de feminicídios e 89% das vítimas de violência
sexual.”
Os dados do feminicídio são do relatório Violência contra Meninas e Mulheres do
1º semestre de 2022, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que
notificou 699 casos no período analisado. O documento foi lançado em
dezembro. Nos anos anteriores, o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, da mesma instituição, relata 1.229 feminicídios em 2018,
1.330 em 2019, 1.354 em 2020 e 1.341 em 2021. Os dados completos de 2022 ainda
não foram divulgados.
O relatório da transição aponta o desmonte
das políticas de enfrentamento à violência contra a mulher como
causa do agravamento da situação, como a paralisação do Disque 180, que
teve apenas R$ 6 milhões no ano de 2023 destinados aos serviços de denúncia,
acolhimento e orientação das mulheres vítimas de violência doméstica.
“No caso do programa Mulher Viver Sem
Violência, os principais eixos que garantiam a capacidade de execução foram
retirados da legislação, desobrigando o Estado de cumpri-los. O orçamento do
programa foi desidratado em 90%, e a construção de Casas da Mulher Brasileira
foi paralisada”.
A coordenadora da Cepia afirma que toda a
rede de proteção foi desmontada nos últimos anos, apesar de o país contar com o Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, envolvendo as três esferas de
governo, lançado em 2007 e atualizado em 2011.
“O que a gente está vendo é que a rede de
atendimento às mulheres, nos últimos anos, tem se enfraquecido cada vez mais.
São centros de referência com instalações precárias, são equipes desfeitas, as
delegacias, o atendimento na área da saúde, esses serviços públicos têm sido
enfraquecidos e muitos desmobilizados no Brasil todo”.
De acordo com Basterd, é urgente uma mudança
de mentalidade para tirar o país da barbárie imposta por pensamentos como o
machismo, o racismo e a homofobia, bem como o aumento da cultura armamentista.
“Então, são políticas públicas de âmbito
nacional, o desarmamento da população, a educação da população para padrões civilizatórios.
Nós estamos vivendo padrões de barbárie, com discursos de ódio, uma
intolerância imensa, e claro que tudo isso incentiva esses criminosos, esses
feminicidas, a praticarem esses atos contra as mulheres. Não se trata apenas de
punir agressores, de punir criminosos, se trata sim de reeducar a sociedade
para padrões civilizatórios das relações entre os indivíduos”.
Blog do Paixão