- Author,Thomas
Pappon
- Role,Da BBC News Brasil em Londres
Esta reportagem foi publicada originalmente em 14 de
março de 2018.
"Aí cheguei, me aproximei do Hitler e falei assim: Seu Hitler, o senhor completamente embriagado! Um homem de cartaz na Alemanha. Por que o senhor bebe tanto assim? Aí, ele disse, 'por que eu bebo, meu amigo? Escuta só: Tornei-me um ébrio, na bebida posso esquecer/ o Mussolini, que eu amava, e que me abandonou/bombardeado pela RAF vivo a sofrer/ e não encontro um lugar pra me esconder...'"
Esse "diálogo com Adolf Hitler" é narrado por um
soldado brasileiro no estilo stand-up musical, fazendo uma versão bem-humorada
de O Ébrio, grande sucesso de Vicente Celentino na época, em
um show de calouros gravado pelo Serviço Brasileiro
da BBC na Itália em
junho de 1945 com os pracinhas que
aguardavam o retorno ao Brasil.
O show, um raro e precioso registro em áudio do momento em
que saboreavam a vitória com um misto de alto astral e pesar pela morte de
companheiros, foi registrado com auxílio de uma rara unidade móvel de gravação
da BBC.
Além de gravar esse show e vários sambas compostos pelos
pracinhas em pleno front, essa unidade registrou - sempre em frágeis discos de
alumínio cobertos por um laque especial, já que ainda não havia gravadores
portáteis de fita magnética - os sons do dia a dia dos soldados nos
acampamentos, além de relatos, crônicas e mensagens a familiares.
Essas gravações, feitas pelo correspondente de guerra da
Seção Brasileira da BBC, o anglo-gaúcho Francis Hallawell, com ajuda do técnico
de som britânico Douglas Farley, foram resgatadas pela BBC News Brasil como
parte das celebrações dos seus 80 anos e estão sendo disponibilizadas ao
público para marcar essas oito décadas de produção de conteúdo para o Brasil.
Historiadores e especialistas que tiveram acesso ao material
ouvido pela BBC News Brasil foram enfáticos ao situar sua importância.
"Foi emocionante ouvir as gravações", diz
Francisco César Ferraz, professor do Departamento de História da Universidade
Estadual de Londrina (UEL), com anos dedicados à pesquisa da participação
brasileira na Segunda
Guerra e autor de dois livros sobre o assunto - O Brasil e a
Segunda Guerra Mundial e A Guerra Que Não Acabou.
"Uma coisa é passar anos estudando ou lendo sobre o assunto, outra é realmente ouvir esses registros. A variedade de tópicos, de situações... têm de tudo... desde reportagens relidas por correspondentes de guerra, seleções musicais, eventos, missas, humor, personagens, serviço médico... um material fantástico. É um estímulo a outros pesquisadores."
Para Vinicius Mariano de Carvalho, professor e pesquisador
do Brazil Institute do King's College, em Londres, que ajudou a BBC a recuperar
esse material e está publicando um trabalho focado nas músicas compostas
pelos pracinhas, as gravações de Hallawell "nos aproximam demais do que
viveram esses soldados na guerra".
"O som do acampamento, da panela ao fundo, pessoas
falando... é a única imagem que a gente tem do universo sonoro desses
pracinhas. Esse material é extremamente importante, possivelmente o único
documento sonoro que dá voz ao soldado brasileiro na Itália."
As gravações resgatadas totalizam pouco mais de quatro horas
de áudio. São 12 programas de duração e temas variados com material gravado
durante os oito meses de campanha militar dos 25 mil integrantes da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália.
'Cartas, pessoal!'
Parte desse material foi transmitido ao Brasil por rádio
durante a guerra, como por exemplo as reportagens que mostram uma distribuição
de cartas e a "hora do rancho" em um acampamento, a visita a um
hospital - transmitida para o Brasil na noite de Natal de 1944 - e o registro
de uma missa na Catedral de Pisa, em que mais de mil soldados e oficiais, com a
presença do comandante da FEB, general Mascarenhas de Morais, cantaram o Hino
Nacional.
Um dos mais curiosos é o programa com um show de variedades
celebrando a vitória, realizado no clube da FEB em Alessandria, no norte da
Itália, quando os soldados aguardavam o retorno ao Brasil. O programa segue a
linha de shows de rádio ao vivo populares na época, com concurso de calouros,
música e muito humor, e foi gravado especialmente "para as famílias (dos
expedicionários) no Brasil, enquanto espera-se o grande dia do embarque".
Mas boa parte dos programas foi montada mais tarde, quando
os soldados já tinham sido desmobilizados e retornado a suas cidades, como as
homenagens aos três regimentos de infantaria da FEB - o 1º, também conhecido
como Regimento Sampaio, baseado na então capital, Rio de Janeiro, o 6º, baseado
em Caçapava (SP) e o 11º, de São João del-Rei (MG), recontando suas campanhas
com depoimentos e dramatizações feitas no estúdio da BBC.
O material do "Chico da BBC" deu impacto às
transmissões da Seção Brasileira da BBC em ondas curtas. Eram três horas
diárias de transmissão, sempre à noite, no horário nobre dos anos de ouro do
rádio no Brasil. Havia notícias, programas de variedades, música, radioteatro e
"cerca de 15 minutos dedicados ao noticiário sobre a guerra", segundo
o livro Vozes de Londres, de Laurindo Lalo Leal Filho, que conta
a história da
Seção Brasileira da BBC desde sua criação, em março de 1938.
As notícias que os brasileiros ouviam sobre a guerra eram
traduzidas do inglês, o que, segundo Rose Esquenazi, professora da PUC-Rio e
autora de O Rádio na Segunda Guerra: no ar, Francis Hallawell, o
Chico da BBC, longe de ser um problema, ajudou a dar crédito ao conteúdo.
"A BBC trouxe maior equilíbrio. Falava quando um navio
inglês era afundado", diz ela à BBC News Brasil. "As pessoas sabiam
que havia a censura do Estado Novo. Se você ouvia em outra rádio, a notícia
seria mais parcial. Os brasileiros sentiam que o noticiário da BBC era mais
isento."
As vozes dos combatentes brasileiros e as crônicas enviadas
por Hallawell "traziam humanidade" nessas transmissões. "As
pessoas queriam que a guerra acabasse, e o Chico trazia as informações lá do
front, onde estavam os filhos, os maridos e os noivos", afirma Esquenazi.
'Ô Félix, tá caindo muita coisa no front?'
Hallawell, nascido em Porto Alegre e educado parcialmente na
Inglaterra, falava português com um leve sotaque britânico, mas sua voz, diz
Esquenazi, "tinha certa intimidade com o ouvido do brasileiro".
Legenda da foto,'As pessoas queriam que a guerra acabasse, e o Chico trazia as informações lá do front, onde estavam os filhos, os maridos e os noivos'
Apesar de muitos soldados estarem "lendo" suas
falas - em particular nos programas feitos em homenagem aos regimentos de
infantaria -, a impressão que fica no ouvinte é de que eles se comunicam com
"Chico" de forma aberta e direta.
Para Francisco Ferraz, as gravações ajudam a traçar um
perfil mais nítido dos pracinhas.
"Esse perfil é um dos pontos sobre o qual menos temos informações, a documentação da FEB não é muito pródiga nisso. Em vários momentos (nas gravações), há o cuidado de se perguntar o nome e a origem do soldado, a cidade de onde vem, o que ele fazia..."
"Nos anos 1940, o Brasil era muito diferente, tínhamos
uma população pouco alfabetizada. Dados estatísticos indicam que, apesar de
restrições do Exército, 6% dos soldados eram analfabetos. Quando você vê essa
gente simples, que enfrentou temperaturas que nunca tinha enfrentado, nunca
havia treinado para combater em montanhas - bem diferente a combate em terra
plana -, vê que esses jovens pertencem ao coração do povo brasileiro, no
sentido de sua extração."
Vinicius Mariano de Carvalho aponta para a riqueza
"fabulosa" das gravações do expedicionários fazendo música. "Nos
dá a dimensão da expressão humana musical que esses soldados estão encontrando
e fazendo no meio do campo de batalha".
Hallawell e Farley gravaram 16 músicas em pelo menos quatro
locais diferentes na Itália. Treze dessas canções, em sua maioria sambas e
marchinhas, foram compostas por pracinhas.
"Música e guerra andam a par e passo", diz Carvalho. "Ela exerce uma função catártica incrível."
Crédito,Exército Brasileiro
Legenda da foto,'Música e guerra andam a par e passo'
"A FEB tinha uma banda de música, formada por cerca 60
músicos. Essa banda se desmembrava em pequenos grupos para tocar em
acampamentos e circular com mais facilidade. Uma delas era a orquestra de jazz,
formada pelo pessoal do regimento de São João del-Rei (o 11º), quase imitando
uma big band americana."
As orquestras militares eram comuns na Segunda Guerra. O
conhecido músico americano Glenn Miller dirigiu a banda da Força Aérea
americana na Europa - e morreu em um suposto acidente quando seu avião
desapareceu em um voo de Londres a Paris em dezembro de 1944.
Um dos programas diz, entretanto, "ser interessante
notar que os brasileiros são os únicos de todos os combatentes na Itália que
escrevem suas próprias canções". Carvalho diz ser "difícil
saber" se a afirmação procede, mas que os pracinhas fizeram na Itália
"o que se fazia no Brasil, com incorporação de termos em italiano, com
narração do cotidiano que eles estão vivendo".
"É uma rica transposição de uma vivência musical do
Brasil para lá", diz o pesquisador, salientando "a grande relação de
mútua troca" entre brasileiros e italianos.
Não se ouve a palavra "alemão" nos sambas. Ouve-se
"tedesco" - como nos sambas Tedeschi Portare Via ou Tedesco
Levante o Braço. "Ou 'paúra', em vez de 'medo'."
"Há um fator que não podemos negligenciar dessa união,
que é o catolicismo", pondera Carvalho. "A Itália é extremamente
católica, o Brasil é eminentemente católico. É comum a narrativa de famílias
italianas que abrigavam os brasileiros, compartilhando o que tinham na mesa,
rezando o terço juntos."
"Outra coisa é a facilidade da língua. De todo o contexto do 5º Exército (americano, ao qual a FEB se juntou) e seus aliados, um grupo extremamente multicultural - com indianos, poloneses, neozelandeses, americanos, ingleses, canadenses - a única língua neolatina é o português. O entendimento foi facilitado por essa raiz comum na língua."
Crédito,1SgtNahon-AHEx/Exército Brasileiro
As composições próprias, segundo Mariano de Carvalho, em sua
maioria "são músicas humorísticas, ironizando os alemães ou louvando as
batalhas que fizeram". Dessas, ele destaca Onde Vi Muito Tedesco,
uma embolada que descreve passo a passo a tomada de Monte Castello. "É uma
música fantástica. Narra detalhadamente as linhas de defesa, o avanço da tropa,
a aviação 'que criou muita confusão', o major Syzeno Sarmento, comandante de um
os batalhões... e assim vai."
As exceções são O Morto Vivo, uma surreal
conversa entre um soldado e um cadáver, o emocionante samba Lembrei ('Se
algum dia eu voltar/ jamais eu hei de pensar/ nas crises que eu passei/ pela
vitória da pátria que tanto amei/ E será nobre dizer/ quando meu filho crescer/
a história de seu pai/ que com muito sacrifício/ buscou em seu benefício/ a
vitória e a paz...), composto por um soldado morto em Monte Castello,
Alcebíades Sodré, e apresentado pelo grupo de jazz da FEB no show de variedades
em Alessandria.
"É um samba bem dramático, dolente, como se (o autor)
estivesse prevendo que fosse morrer", diz Mariano de Carvalho.
Menosprezo
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil acreditam que
essas gravações podem ajudar a reverter o que Mariano de Carvalho chama de
"tendência a menosprezar a participação brasileira na Guerra".
Francisco César Ferraz diz que essa reversão já está em
curso há alguns anos, e que as gravações "vêm em hora oportuníssima".
"Durante muito tempo, a historiografia universitária,
que é a que dita os tópicos que serão valorizados (no ensino escolar de
História do Brasil, por exemplo), desprezou a participação brasileira na
Segunda Guerra."
Uma explicação para esse "desprezo" seria o fato
"de parte da cúpula do golpe de 1964 ter pertencido à FEB". "Há
essa associação, a meu ver errada, entre militares da FEB e militares que
patrocinaram o regime militar. Na FEB havia de tudo. Havia células comunistas
dentro da FEB. Dois dos dirigentes nacionais do PCB pertenceram à FEB, Salomão
Malina e Jacob Gorender."
"No últimos dez anos houve um volume crescente de interesse pela participação na FEB e na FAB (Força Aérea Brasileira, que também esteve na Itália). E isso começou a repercutir no material didático. O número de documentários sobre a FEB e a participação do Brasil na Segunda Guerra aumentou bastante."
"Provavelmente é uma questão geracional. A geração mais
jovem não tem o ranço, aquele rancor contra as Forças Armadas, da geração
anterior."
Um exemplo da retomada das produções sobre o assunto são os
livros (1942: O Brasil e sua Guerra quase Desconhecida e Minha Segunda
Guerra) e documentários (1942: O Brasil e sua Guerra quase Desconhecida, Um
Brasileiro no Dia D e O Caminho dos Heróis) de João
Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso, que se interessou pela Segunda
Guerra Mundial em parte por seu pai ter sido pracinha.
"Todo mundo que toma conhecimento desse assunto fica
surpreso, impressionado com o que aconteceu, com os fatos que levaram o Brasil
a entrar na guerra, se comove e se emociona", - conta.
Quando conversou com a BBC News Brasil, Barone ainda não
tinha ouvido as gravações de Hallawell - das quais conhecia apenas
"algumas coisas que circulavam pela internet, aquela gravação do Hino
Nacional sendo cantado em Pisa, algumas músicas".
Mas disse que "está todo mundo curioso para ouvir isso,
é um material preciosíssimo".
A participação na Segunda Guerra e o contexto em que ela se
deu "foi uma experiência tão valiosa do nosso povo", ressalta.
"É muita coisa interessante que ajuda a explicar o
Brasil de hoje."
Experiência e espírito de corpo
De fato, é difícil não se surpreender com a jornada dos
pracinhas e como ela se encaixa na história recente do país. A aproximação com
os EUA se consolida durante a guerra, com os acordos entre Getúlio Vargas e o
então presidente americano, Franklin D. Roosevelt.
O Brasil permite a instalação de bases militares (notadamente em Natal - RN), promete fornecer munição e borracha e envia soldados para lutar contra os alemães. Em troca, os EUA bancam a criação da Companhia Siderúrgica Nacional com a construção da usina de Volta Redonda, o "marco zero da nossa industrialização", como diz Barone.
Crédito,1SgtNahon-AHEx/Exército Brasileiro
Além disso, os EUA treinaram e armaram os soldados
brasileiros na Europa - ajudando, talvez involuntariamente, a criar o que
muitos viram como um "monstro" indesejado no Brasil.
Ao final da guerra, os mais de 24 mil expedicionários
compunham uma força militar sem
rival no país. Tinham experiência de combate, armas e um invejável espírito de
corpo.
Não à toa, foram desmobilizados ainda na Europa. Após os
desfiles no Rio de Janeiro, onde foram saudados como heróis, tiveram de
retornar imediatamente às vidas que tinham antes. Francisco Ferraz explica que
havia um grande receio, tanto no governo como na oposição e nos quartéis, com o
possível engajamento dos pracinhas nos eventos políticos do país.
"Eles queriam despolitizar os pracinhas o quanto antes. A história já havia dado os exemplos dos soldados russos que voltaram da Primeira Guerra e acabaram apoiando os bolcheviques, e dos militares alemães que retornaram da mesma guerra e moldaram as bases do Partido Nazista."
"A FEB teve células comunistas", lembra Ferraz.
"Vargas tinha promovido uma abertura no fim de seu governo. Ele não apenas
libertou líderes comunistas como (Luis Carlos) Prestes, como também permitiu a
legalização do Partido Comunista."
"Era um clima político bastante conturbado. E nos quartéis, os oficiais que haviam ficado no país receberam com hostilidade os que voltaram condecorados da Itália. Eles temiam ser preteridos por oficiais da FEB. A cúpula militar também não ajudou. Muitos ex-combatentes foram transferidos para bases distantes."
Outra história pouco conhecida é a dos problemas de
adaptação que muitos ex-combatentes sofreram. Muitos voltaram com traumas e
neuroses e tiveram grande dificuldade para retomar suas vidas. O governo
prestou pouca ajuda - ao contrário do que ocorreu nos EUA, onde houve um plano
de reintegração com vários tipos de apoio aos soldados que regressaram da
guerra.
Logo esquecidos - e, aos poucos, perdendo cada vez mais
espaço nos livros de História do Brasil -, os pracinhas mantiveram acesa a
chama do espírito de corpo com associações de veteranos. Essas foram
fundamentais na luta por benefícios como uma pensão, aprovada apenas em 1988 -
43 anos depois do retorno -, chegando tarde demais para muitos ex-combatentes.
Com agradecimento especial à Embaixada do Brasil em
Londres, que guardou parte dos arquivos usados no documentário.
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 14 de março de 2018.
Blog do Paixão